Lendas da Amazônia: histórias que assombram e encantam gerações

Foto: Arte Onda Digital.
Mesmo considerando a riqueza e a diversidade do folclore brasileiro, a região amazônica se destaca. Trata-se de um conjunto de costumes, crenças e saberes tradicionais, no qual se veem lendas e personagens fantásticos, sempre relacionados ao bioma e à natureza.
Nesse contexto, algumas lendas se destacam pela importância cultural e pelo significado que têm para as pessoas que vivem na região.
Com esse objetivo, a Rede Onda Digital convidou a professora Neiza Teixeira, escritora e doutora em Filosofia, e coordenadora editorial da Editora Valer, para debater algumas das lendas mais conhecidas da região.
Ela disse:
“O que é uma lenda? É uma história fantasiosa, às vezes sem importância, quase uma tonteria, poderíamos dizer assim. Mas são histórias que explicam como algumas coisas vieram a ser, e existem no mundo. Às vezes elas justificam coisas que não são consideradas aceitáveis nas comunidades”.
Lenda do Boto
Segundo a lenda, o boto é um rapaz elegante que costuma aparecer nas comemorações dos santos populares, durante as festas juninas. Ele surge na festa vestido de branco e usando um chapéu, para supostamente esconder o buraquinho que o boto tem no alto da cabeça para respirar. O boto então seduz alguma moça, a leva para o rio, a engravida e nunca mais reaparece.
A lenda é usada para justificar gravidez fora do casamento e/ou indesejada na região amazônica – “é filho do boto”. Tendo em vista que estão cada vez mais comuns os casos de abuso sexual e estupro sobre meninas e adolescentes na região, a lenda atualmente assume um contorno mais sombrio do que costumava ter.
Sobre a lenda do boto, a professora Neiza disse:
“Minha mãe nasceu e cresceu no entorno ali próximo a Parintins, e conta-se muito na comunidade que pessoas viram o boto, aquele homem lindo, vestido de linho e que seduz as moças bonitas das festas. Minha mãe era muito bonita e contou que sofreu assédio do boto.
Bem, as moças sob o encanto do boto vão com ele até o rio, entram num transe e se descobrem grávidas. E o pai não tem compromisso com ninguém, e vai engravidar outra em outra festa. Acredito que seja uma lenda de beiradão. É uma explicação diferente que damos pras coisas. Na civilização ocidental, usamos muito a razão para explicar as coisas. Nós nunca criaríamos uma lenda como essa, e a lenda é estruturante, ela dá significação ao mundo para as comunidades que a aceitam como verdadeira”.
Leia mais:
Descubra 3 alimentos “made in amazônia” comercializados em várias partes do mundo
Conheça 5 aves consideradas as mais “estranhas” do mundo; uma delas está na Amazônia
Lenda do Guaraná
Segundo a lenda, o fruto do guaraná, símbolo do Amazonas, é originalmente os olhos de um indiozinho que foi mordido por uma serpente quando estava apanhando frutos na floresta.
A lenda começa quando um casal de indígena que não tinha filhos pediu ao deus Tupã que tornasse possível o seu desejo de serem pais. O deus atende o pedido e o casal é agraciado com o menino Cauê. Tupã dá ao menino o dom de conversar com as plantas e os animais.
Porém, seu irmão invejoso, Jurupari, planeja matar Cauê. Um dia, enquanto o menino colhia frutos na floresta, Jurupari se transformou em serpente, que picou Cauê.
Tupã mandou trovões ensurdecedores alertando os pais do perigo que o menino corria, mas eles não conseguiram salvá-lo a tempo do veneno da serpente.
Assim, Tupã mandou plantar os olhos da criança para que deles nascesse uma planta. O fruto dessa planta deveria ser dado para as pessoas comerem com o objetivo de lhes dar energia. A lenda acaba servindo de explicação sobre a aparência do guaraná, que lembra um par de olhos humanos.
Há outra versão da lenda: Nela, Jurupari transformou-se em um animal assustador e escondeu-se para dar um grande susto em Cauê, que desmaiou. Depois de acordar, ele percebeu que tinha deixado de ouvir e também não conseguia falar. Toda a tribo ficou triste, o menino deixou de brincar, as plantas e os animais ficaram doentes.
Então, Tupã deu outro dom a Cauê, o dom de se comunicar com a língua de sinais, e ele ficou feliz novamente. O indiozinho cresceu, teve filhos, ensinou a língua de sinais a todos e, quando morreu, seus filhos pediram a Tupã uma homenagem ao seu pai para que ele nunca fosse esquecido. Tupã atendeu o pedido e fez nascer a árvore do guaraná, que deixou todos encantados com os seus frutos. A cor da fruta lembrava o tom da pele de Cauê e as sementes lembravam os seus olhos.
Sobre a lenda do guaraná, a professora Neiva afirmou:
“O mal existe em todas as comunidades e precisa ser justificado. Todas as manifestações humanas precisam de justificativas. Nas comunidades, quando acontece o mal, esperamos o bem, e reconhecemos o mal porque sabemos da existência do bem. Por exemplo, na lenda do guaraná, quando morre alguém na comunidade, ela é muito afetada. É necessário que se fale sobre a morte, que se compreenda a morte e que se entenda que ela não precisa ser o fim de tudo. Na lenda, há uma perda e um ganho, o do fruto que hoje é muito importante para a economia dos povos indígenas, especialmente dos saterê-mawés, é uma justificativa para seu uso e sua existência. E supre também a necessidade amorosa para a existência do fruto”.
Lenda do Uirapuru
O uirapuru seria um pássaro mágico que vive na região amazônica. De acordo com a lenda, o uirapuru tinha sido um jovem guerreiro indígena chamado Quaraçá, pertencente a uma nação indígena da floresta amazônica.
Quaraçá adorava passear pelas matas tocando sua flauta de bambu. Ele era apaixonado por uma bela indígena chamada Anahí, que era casada com o cacique (chefe indígena) da tribo. Sofrendo muito pelo amor impossível, o jovem indígena resolveu entrar no meio da floresta para buscar a ajuda do deus Tupã.
Entendendo o sofrimento de Quaraçá, Tupã resolveu transformá-lo num pequeno pássaro colorido (vermelho e amarelo com asas pretas), para assim livrá-lo do sofrimento. Quaraçá, que ganhou o nome de Uirapuru, voou pela floresta, chamando atenção com seu canto. Toda vez que via Anahí, pousava e cantava para a jovem índia, que ficava maravilhada com o som daquele pequeno e lindo pássaro.
O cacique da tribo também ficou encantado com o canto do pássaro e, com o objetivo de aprisioná-lo, se perdeu na floresta e nunca mais voltou. Sozinha, restava a Quaraçá ouvir o canto de seu pássaro favorito. E ao jovem indígena, agora transformado em pássaro, restava que a índia amada descobrisse quem ele era para desfazer o encanto.
Sobre essa lenda, a professora afirmou:
“A lenda do uirapuru é sobre o amor, diria assim que representa uma ética amorosa. Todos nós temos amores impossíveis. Na lenda, o pássaro tem um canto belíssimo, e essa beleza é associada ao amor e ao sentimento impossível, que não deu certo. É algo como um código de ética para as comunidades, que precisa ser obedecido. É uma condição da existência humana, os amores possíveis e impossíveis. Então, a lenda do uirapuru trata de uma ética amorosa”.






