Cachorro-quente, hot dog, hot pork, kikão, o Brasil não tem limites na hora de fazer um sanduíche

O cachorro-quente no Brasil é muito mais do que pão com salsicha e molho de tomate. É um símbolo da criatividade da gastronomia diversa que o País tem, sendo uma verdadeira colcha de retalhos de sabores, ingredientes e modos de preparo. Do Sul ao Norte, cada Estado (e às vezes, cada bairro) tem a sua versão desse clássico de rua, que desafia qualquer noção de simplicidade, como bem mostra a versão baré do sanduíche, o famoso Kikão.
Criado pelo empresário Alceu Tomaz Pereira, que nos anos 70 mantinha um trailer de lanche na praça de São Sebastião, no Centro de Manaus, a versão amazonense do cachorro-quente, inclui salsicha cozida, pão de massa fina, molho de tomate com creme de leite, seleta de verduras e cobertura com ketchup, maionese e queijo ralado.
Da versão do Alceu derivou-se todo tipo de receita de kikão, chegando nos dias atuais a uma versão muito famosa em Manaus, comercializada nos sistemas self-service ou rodízio. Em uma rede de lanchonetes chegou-se ao paroxismo (momento de maior intensidade) de oferecer kikão com 65 opções de recheio, com três opções de tamanho de pão, sendo uma delas com 65 centímetros (mais que duas réguas plásticas do tempo da escola!).
Essa versão alongada, para dizermos assim, do kikão/cachorro-quente desta rede de lanchonetes, dá um bom panorama de como esse sanduíche se desenvolveu, com receitas e modos de apresentação, ao longo dos anos no Brasil, onde chegou nos anos 30 do século passado, junto com imigrantes alemães que vieram dos Estados Unidos.
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Sudeste: O reinado da batata-palha e do purê
Em São Paulo, o cachorro-quente se transforma em refeição completa. O pão é tradicional, a salsicha é cozida, mas o que faz o paulistano levantar sobrancelhas é o purê de batata. Sim, ele vai no sanduíche, cobrindo generosamente a salsicha. Junte a isso milho, ervilha, molho vinagrete, ketchup, mostarda, maionese e, claro, a onipresente batata-palha. O resultado é um lanche de camadas, geralmente comido de garfo e faca – ou com duas mãos e muita coragem.
A exceção que faz sucesso na “paulicéia desvairada” está na famosa A Casa do Porco, do chefe Jefferson Rueda, que mantém ao lado do restaurante estrelado uma portinha, a Hot Pork, que vende um cachorro-quente que é só pão com a salsicha de porco. Simples, delicado e caríssimo, R$ 49 a unidade, mas acompanha suco de hibisco com limão.
Rio de Janeiro: O clássico de calçada
No Rio de Janeiro, o estilo é mais direto. O cachorro-quente carioca costuma ser servido com pão francês ou de leite, salsicha afogada em molho vermelho, milho, ervilha e batata palha. Mas o charme está nas opções “à la carte”: ovo de codorna, queijo ralado, bacon, e até frango desfiado. A escolha é do freguês. Comer com a mão ainda é regra, embora os guardanapos nunca sejam suficientes.
Centro-Oeste: completo e generoso
Em Goiás e no Distrito Federal, o cachorro-quente é “completo” de verdade. Vai purê, molho, queijo, milho, ervilha, vinagrete, ovos cozidos picados e até carne moída ou frango. Em algumas cidades, como Goiânia, é comum usar pão francês no lugar do pão de hot dog (massa fina), e o molho da salsicha é espesso, quase um ragu.
Sul: salsichão, queijo e pão de qualidade
No Sul, a influência germânica aparece nos ingredientes. Em cidades como Porto Alegre, o “cachorro-quente” muitas vezes vira “cachorrão” – feito com salsichão (bockwurst ou bratwurst), pão artesanal e queijo derretido. Pode vir prensado ou assado no forno. O molho é menos comum, e a qualidade dos embutidos é levada a sério.
Em Santa Catarina, há variações com chucrute e mostarda escura, claramente inspiradas na culinária alemã.
Nordeste: criatividade sem limites
No Nordeste, o cachorro-quente é terreno fértil para a inventividade. Em Salvador, por exemplo, não é raro encontrar versões com vinagrete, carne do sol, pimenta, queijo coalho ralado e farofa.
Em Recife, há quem adicione charque ou até molho de camarão.
Já no Ceará, o cachorro-quente pode vir prensado na chapa com queijo e ovo, virando uma espécie de misto-quente turbo.
Norte: tucupi, jambu e sabores amazônicos
No Norte, especialmente no Pará, há experiências únicas. Alguns empreendedores ousaram incluir ingredientes típicos da região, como jambu e até molho de tucupi em versões gourmetizadas do cachorro-quente.
Portanto, o cachorro-quente brasileiro é, em essência, um reflexo do país: diverso, criativo e, por vezes, exagerado. É vendido em carrinhos nas esquinas, em lanchonetes de bairro e até em food trucks gourmet.
Mais do que um lanche, ele representa a identidade local em cada mordida. E, se há uma regra em meio a tantas receitas, é essa: no Brasil, não existe cachorro-quente errado — só versões diferentes do mesmo amor.
