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Professora de Manaus aprendeu Braille e se reinventou para incluir aluna com deficiência visual

"Estou ali para garantir que a estudante brilhante que ela é tenha acesso a tudo que a escola pode oferecer", ressalta Neiva Alfaia
15/10/25 às 11:59h
Professora de Manaus aprendeu Braille e se reinventou para incluir aluna com deficiência visual

(Foto: Acervo pessoal/Neiva Alfaia)

O Dia do Professor, comemorado nesta quarta, 15 de outubro, é uma das datas mais simbólicas do calendário escolar brasileiro. A celebração reconhece o papel essencial dos profissionais da educação na formação de cidadãos, no desenvolvimento do país e na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva.

Embora não seja um feriado nacional, o Dia do Professor é considerado feriado escolar, conforme o Decreto Federal n.º 52.682, de 14 de outubro de 1963, que instituiu oficialmente a data. Em comemoração ao dia, a Rede Onda Digital conversou com a educadora Neiva Alfaia, professora auxiliar de apoio escolar na Escola Estadual José Bentes Monteiro, localizada no bairro Aleixo, zona Centro-Sul de Manaus.

Neiva se reinventou para acompanhar Gabryelle Braz, uma estudante do 8º ano com deficiência visual. Mais do que uma relação de ensino, as duas compartilham uma história de aprendizado mútuo, superação e afeto — um exemplo vivo de educação inclusiva que vai muito além da teoria.

O desafio de transformar a sala de aula em um espaço acessível

Quando recebeu a missão de acompanhar Gabryelle, Neiva sabia que o desafio seria grande.

“A primeira grande adaptação foi eu mesma”, confessa.

Determinada a garantir que a aluna tivesse acesso pleno ao conteúdo, ela decidiu aprender Braille — sistema de leitura e escrita utilizado por pessoas cegas — e também o Soroban, um instrumento japonês utilizado para cálculos matemáticos por pessoas com deficiência visual.

“Confesso: foi uma experiência única! Chegava em casa com os dedos dormentes, confundindo os pontos. Mas a primeira vez que ela leu um bilhete que eu deixei em Braille e deu um lindo sorriso, foi incrível. Percebi que não era sobre um código, era sobre chegar até ela”, conta.

A partir dessa experiência, Neiva começou a reinventar suas aulas. Materiais simples, como cola quente, EVA e barbante, transformaram-se em ferramentas pedagógicas poderosas.

“A gente foi inventando um jeito de tornar o mundo visível para as mãos dela. Atividades viraram obras de arte, e eu virei uma narradora de cinema. Descrevo tudo: ‘Agora o professor está desenhando um círculo, ou escrevendo uma equação com caneta vermelha’.”

Professora de Manaus aprendeu Braille e se reinventou para incluir aluna com deficiência visual
(Foto: Acervo pessoal/Neiva Alfaia)

No caderno de Gabryelle, Neiva registra todas as explicações dos professores e cria figuras geométricas em relevo, permitindo que a aluna compreenda visualmente por meio do tato. Apesar das adaptações, ela destaca que a estrutura escolar ainda é um desafio, especialmente por falta de pisos táteis direcionais e sinalizações adequadas.

“Precisou-se também fazer com que ela usasse a bengala e também treinando para explorar os espaços escolares e assim tornar-se cada vez mais autônoma, uma vez que a escola não possui pisos táteis direcionais ou algo que auxilie na orientação e mobilidade de alunos com deficiência visual.”

A professora conta que adaptou a música ‘Aquarela’, para que Gabryelle pudesse sentir a música ouvindo e tocando com as mãos. O momento foi registrado em vídeo:

Neiva também ajuda Gabryelle a correr para desenvolver a coordenação motora de forma adequada. Veja:

 

Inclusão que exige tempo, criatividade e empatia

Entre os principais desafios de trabalhar com a inclusão de alunos com deficiência, Neiva destaca o tempo.

“O maior desafio, sinceramente, não está nela ou na deficiência. Está no tempo. A inclusão de verdade exige uma dose extra de planejamento e criatividade que, muitas vezes, esbarra na rotina atribulada da escola”, desabafa.

A professora explica que adaptar conteúdos complexos do 8º ano, como gráficos de funções ou estruturas celulares, para experiências táteis significativas demanda horas de pesquisa e confecção de materiais.

“É um desafio logístico e de recursos, mas que se transforma em uma motivação quando vejo o resultado. Cada obstáculo vencido é uma vitória nossa, e cada adaptação que eu crio acaba se tornando um recurso incrível para outros alunos que aprendem de forma cinestésica.”

Ela destaca ainda que os desafios vão além do material didático. Há uma barreira natural na comunicação entre professores e alunos com deficiência visual:

“Um dos pontos também sobre os desafios que ela enfrenta na sala de aula é como os professores fazem para explicar a ela um conteúdo. Eu, como profissional de apoio, auxilio no máximo que posso, mas ainda há uma barreira em como os professores das disciplinas específicas podem explicar certos conteúdos, uma vez que os conteúdos são para serem vistos por videntes — imagens, cores, formatos — e os professores acabam, em certos momentos, sem saber como fazer.”

Professora de Manaus aprendeu Braille e se reinventou para incluir aluna com deficiência visual
(Foto: Acervo pessoal/Neiva Alfaia)

Apesar das limitações, Neiva elogia o esforço coletivo:

“Não é culpa deles, que inclusive fazem as aulas mais interativas para ela, que além de ouvir com atenção, possa absorver o máximo possível de conteúdo, somente com a escuta e, algumas vezes, com explicações táteis e comparações com algo que ela já conheça. Os desafios são diários, mas ela se mostra super interessada em aprender mais e sempre sorridente e alto astral.”

A professora reforça um ponto essencial:

“Incluir de fato um aluno deficiente visual requer tempo, planejamento, estrutura, material e, muitas vezes, isso não acontece de fato.”

O papel da empatia no ambiente escolar

Além do aprendizado, a convivência social é uma parte fundamental da inclusão escolar. No caso de Gabryelle, Neiva explica que o barulho excessivo é um obstáculo.

“Gaby (como carinhosamente é chamada) não gosta muito de barulho. Por não ter a visão, logo aguça outros sentidos, e a audição é uma delas. Ambientes com muito barulho de gritos, falas e outros ruídos a incomodam bastante”, conta a professora.

Com o tempo, a convivência com os colegas tornou-se natural.

“Mesmo assim, mantém contato com os colegas que se interessam em tê-la por perto. No início, os colegas tinham um pouco de receio e não sabiam como chegar para conversar com ela. Agora já é comum eles cumprimentarem, falar seu nome para que ela os identifique e assim iniciar uma conversa […] Os colegas a incluem em grupos de trabalho, ela conversa, ri e ainda dá dicas de como fazer uma determinada atividade. Gaby tem uma memória fantástica”, conta Neiva.

Professora de Manaus aprendeu Braille e se reinventou para incluir aluna com deficiência visual
(Foto: Acervo pessoal/Neiva Alfaia)

Para incentivar a interação, a professora criou jogos pedagógicos táteis, como um jogo da memória feito com cola quente e papel, com formas geométricas em relevo. Gabryelle também adora montar peças de Lego e ouvir histórias — atividades que fortalecem sua criatividade e imaginação.

Um dos momentos mais marcantes na escola foi a festa de 15 anos de Gabryelle, organizada pela própria professora, com a participação de toda a turma.

“De acordo com ela, foi um dos melhores dias da vida dela”, relembra a professora.

Quando a aluna ensina a professora

O trabalho com Gabryelle não apenas transformou a vida da aluna, mas também mudou profundamente a visão de mundo da professora Neiva Alfaia.

“Ela virou minha professora de certa forma. Ela me mostrou que eu era uma professora muito visual. Eu desenhava no quadro e achava que estava claro. Ela me obrigou, de certa forma, a ser mais clara na minha fala, a ser mais criativa, a valorizar outros sentidos.”

Para Neiva, inclusão não é colocar o aluno dentro da sala de aula, mas transformar o ambiente para que ele pertença a ele.

“A inclusão pra mim, hoje, não é sobre colocar ela dentro da sala. É sobre transformar as aulas e a sala de aula em um lugar que é também dela. É construir a casa com portas que todos podem abrir. Ela me fez uma professora melhor, mais humana. No final, acho que fui eu quem mais aprendi: aprendi que enxergar vai muito, muito além dos olhos.”

A professora também ressalta a importância do papel do profissional de apoio escolar.

“Não estou ali para ‘cuidar da aluna com deficiência visual’, estou ali para garantir que a estudante brilhante que ela é tenha acesso a tudo que a escola pode oferecer. A inclusão, para mim, deixou de ser um procedimento e virou uma filosofia: é sobre remover barreiras, não sobre ‘ajudar um deficiente’. É uma honra imensa testemunhar cada conquista dela e saber que eu ajudo a pavimentar o caminho, mas quem caminha com toda a força e inteligência é ela.”

Um futuro promissor

Entre sorrisos e conquistas, Neiva revela o maior sonho de Gabryelle Braz: ser professora.

“Gaby é uma jovem linda e que tem o sonho de ser professora. Ela escreve muito bem e ama contar histórias, tem um conhecimento de mundo incrível, ama postar vídeos e seus registros no Instagram. É uma jovem brilhante e que tem um lindo futuro pela frente. Ela é meu orgulho!”, finaliza.